NOVAS EXIGÊNCIAS AO TRABALHO DOCENTE
Considerando as novas condições de permeabilidade social das mídias e
da informática, dos meios de comunicação e das redes de relações – presenciais
ou virtuais –, das novas posturas na moralidade e nas relações interpessoais,
nas famílias e nos grupos de referência, impactos na socialização das pessoas
são visíveis.
As crianças ingressam nas escolas com vivências cotidianas e
aprendizagens sociais prévias ou paralelas heterogêneas, com expectativas
bem diferenciadas de como ocorria décadas atrás. Dois fatores podem ser
considerados aqui: primeiro, nem sempre há congruência entre valores,
atitudes e comportamentos que circulam nos meios de comunicação, em
dada comunidade, família e escola, podendo os mesmos trazer profundas
contradições entre si; segundo, os estudantes, seres em desenvolvimento, são
fortemente afetados por modismos ou simbolismos criados e disseminados
intensamente por diferentes formas sociais de comunicação.
Os professores
trabalham na confluência dessas contradições e simbolizações, o que
caracteriza, com mais ou menos intensidade, uma situação tensional. Além
disso, são instados a compreender essas crianças e jovens, motivá-los, formá-
-los e ensiná-los. Cada vez mais, os professores trabalham em uma situação
em que a distância entre a idealização da profissão e a realidade de trabalho
tende a aumentar, em razão da complexidade e da multiplicidade de tarefas
que são chamados a cumprir nas escolas.
A nova situação solicita, cada vez
mais, que esse(a) profissional esteja preparado(a) para exercer uma prática
contextualizada, atenta às especificidades do momento, à cultura local, ao
alunado diverso em sua trajetória de vida e expectativas escolares. Uma prática
que depende não apenas de conhecimentos e de competências cognitivas
no ato de ensinar, mas também de valores e atitudes favoráveis a uma postura
profissional aberta, capaz de criar e ensaiar alternativas para os desafios que
se apresentam (TEDESCO, 1995; TEDESCO, 2006; TEDESCO; FANFANI,
2006; GATTI, 2007).
São disposições subjetivas que, porém, se constroem nas experiências formativas e profissionais concretamente vivenciadas e
interpretadas de forma representativa com base em um dado contexto socioprofissional
significativo por cada educador(a). Com respeito à dimensão
subjetiva do desenvolvimento profissional do(a) professor(a), Tedesco (2005)
lembra que o sentido ético e a dimensão política do trabalho docente são os
dois pilares da identidade do(a) professor(a): acreditar no projeto da educação
e acreditar na capacidade do(a) aluno(a).
Nos processos educacionais, não é possível descartar as questões da
subjetividade. Elas colocam-se inicialmente na relação educacional: seres
humanos aprendendo com seres humanos, em condições sociais e psicossociais
em uma dinâmica própria. Severino chama atenção para o fato de que
a educação não pode ser vista apenas como um processo institucional
(SEVERINO, 2009, p.160). É preciso ter presente que ela é uma intervenção
na direção formativa do ser humano, quer pela relação pedagógica
pessoal, quer no âmbito da relação social coletiva. Conforme afirma esse
autor, espera-se que a educação, que é prática institucionalizada em nossa
sociedade, contribua com as ações que constituem a existência histórica das
pessoas e da sociedade humana, em seus três ângulos:
no universo do trabalho, da produção material e das relações econômicas;
no universo da sociabilidade, âmbito das relações políticas, e no universo
da cultura simbólica, âmbito da consciência pessoal, da subjetividade e
das relações intencionais (SEVERINO, 2009, p. 161).
O(a) professor(a) é o(a) ator(atriz) que está no centro do trabalho educacional
institucionalizado, envolvido indissoluvelmente nas relações educativas.
Os processos amplos de reconhecimento social fazem-se presentes nessas
relações, quer nas perspectivas e nas expectativas dos professores, quer nas
dos alunos, assim como os aspectos estruturantes das sociedades em certo
tempo. O cenário no qual os professores atuam e o foco e as suas formas de
atuação têm demandado complexidade crescente. A essa “complexificação”
da condição docente aliam-se a precarização de suas condições de trabalho
no contexto comparativo do exercício de outras profissões e as dificuldades
de manter condições favoráveis para autoestima e, em sua representação,
criar estima social (GATTI; BARRETTO, 2009; MARIN, 2004; IMBERNÓN,
2000). Nessa complexidade, a própria constituição identitária dos docentes
da educação básica coloca-se em tensão.
ESFORÇOS EMPREENDIDOS E PERMANÊNCIA DE DESAFIOS
Nas duas últimas décadas no Brasil, esforços foram concentrados na área
educacional, tendo no seu horizonte os desafios postos pelas demandas e
pelas necessidades que emergiram na sociedade brasileira: necessidades de
ordem social, econômica e cultural no contexto dos direitos humanos.
Com
objetivos próprios provocados por movimentos internos pela atuação de
organizações civis, universidades e sindicatos, como também aliando-se às
iniciativas internacionais da UNESCO na busca de propiciar educação para
todos , o país, por meio de sucessivas gestões e em seus três níveis de governo,
procurou aumentar os anos de escolaridade da população, investir na infraestrutura,
orientar os currículos da educação básica, ampliar as oportunidades
na educação superior, formar os docentes por diversos meios, deslocar
a formação dos professores da educação básica do nível médio para o nível
superior, desenvolver os programas de formação continuada, melhorar os
livros didáticos e a sua distribuição, entre tantas outras ações políticas.
Porém, o Brasil ainda está distante de uma qualidade educacional considerada
razoável, sobretudo no que se refere às redes públicas de ensino, que
atendem à maioria das crianças e dos jovens brasileiros. Vários são os fatores
intervenientes nessa situação, entre eles a questão dos docentes, sua formação
e suas condições de trabalho.
Para a UNESCO, levar em conta a “educação como direito humano e
bem público permite às pessoas exercer os outros direitos humanos. Por essa
razão ninguém deve ficar excluído dela” (UNESCO, 2007, p.12). Isso
implica garantir acesso à escolarização, uma escolarização que revele boa
qualidade formativa, que pratique a não discriminação, que trabalhe com o
paradigma da progressão dos estudantes, que desenvolva atitudes cooperativas
e participativas, que tenha finalidades claras no geral e para cada um
de seus níveis, que cuide dos processos de ensino e de aprendizagem, que os
processos educacionais escolares tenham pertinência, que sejam significativos
para todas as pessoas de diferentes estratos sociais e culturais, e com diferentes
capacidades e interesses, de forma que possam apropriar-se da cultura
mundial e local – e construir-se como sujeitos, desenvolvendo sua autonomia,
autogoverno e sua própria identidade (UNESCO, 2007, p. 14).
Essas posturas colocam responsabilidades novas aos docentes da educação
básica e desafios para as políticas relativas à sua formação e às condições de trabalho. No documento citado, trata-se dos docentes como pessoas que se
relacionam com a garantia do direito à educação. No entanto, isso só poderá
ter sentido com políticas incisivas e coerentes relativas a eles:
A qualidade dos docentes e o ambiente que criam na sala de aula, excluí-
das as variáveis extraescolares, são fatores decisivos que explicam os
resultados de aprendizagem dos alunos, o que significa que as políticas
orientadas a melhorar a qualidade da educação só podem ser viáveis, se os
esforços se concentrarem em transformar com os docentes, a cultura da
instituição escolar. Por sua vez, sem o concurso dos professores, nenhuma
reforma da educação terá sucesso. (UNESCO, 2007, p. 15)
Ao falar de qualidade dos professores da educação básica, também se está
indiretamente referindo aos gestores de escolas que, de origem, são professores.
Não é de hoje que pesquisas apontam que as formas de atuação dos
diretores de escola estão relacionadas às condições de um funcionamento
mais efetivo das escolas (CASTRO, 1985). Isso mostra que a formação
inicial dos docentes tem implicações amplas para as escolas, na medida em
que também esses profissionais poderão ser convocados a exercer a função de
coordenadores pedagógicos, supervisores educacionais ou diretores de escola,
ou outras atividades nas redes de ensino. A compreensão desse quadro
formativo pode orientar caminhos em políticas públicas dirigidas a esse
segmento profissional e às instituições formadoras. Os aspectos relativos à
sua formação continuada, em seus diferentes ciclos de atividade profissional,
merecem cuidados específicos ante as realidades comunitárias e sociais
emergentes. Disso trataremos mais adiante.
No que diz respeito à atuação dos professores na educação básica para a
superação de condições produtoras de marginalização e exclusão dentro e
fora das redes de ensino, seu papel, no intuito de oferecer às crianças e aos
jovens aprendizagens significativas para superar desvantagens sociais, sem
dúvida, é importante. Porém, esse papel está atrelado às suas próprias condi-
ções sociais e de trabalho, aí, incluídas suas características socioeconômicas e
culturais, estruturas de carreira e salários, e sua formação básica e continuada.
Há uma coincidência, que acaba em redundância, que se refere à condição
sociocultural dos professores e às condições de vida dos alunos das redes
públicas de ensino, que, muitas vezes, apresentam alguma desvantagem
social. Atualmente, no Brasil, os próprios professores são provenientes de
camadas sociais menos favorecidas, com menor favorecimento educacional,
especialmente os que lecionam na educação infantil e nos primeiros anos do
ensino fundamental, justamente no período de alfabetização (ALTOBELLI,
politica_docente_APRES_2pags:Miolo_Jornalismo_Cidadao 9/23/11 11:47 AM Page 28
2008; GATTI, 2010). Essas condições comprometem o seu repertório
educacional e limitam as possibilidades de criação de alternativas para lidar
com os fatores de diversidade cultural. São questões que se ligam à formação
inicial, à formação continuada, à necessidade de planos de carreira mais
dignos e perspectivas de trabalho mais motivadoras. Há condições a superar,
mesmo considerando que essas vêm sendo examinadas e discutidas mais
fortemente na última década, tendo gerado políticas regionais e projetos
especiais de formação docente desenvolvidos por alguns estados brasileiros.
Os efeitos dessas medidas só poderão ser avaliados depois de decorrido
algum tempo. São, no entanto, sinalizações positivas na direção de equalizar
oportunidades formativas, de carreira e salário para esses profissionais, bem
como de oferecer a eles melhor qualificação profissional, esperando-se efeitos
positivos na qualidade da educação oferecida pelas escolas públicas e na
atenção às crianças e aos jovens. No entanto, faz-se necessário verificar como
essas iniciativas que agora se implementam são postas em ação, com o objetivo
de prover continuidades ou redirecionamentos. Sua eficácia como política
social e educacional necessita de análise mais acurada.
Outro aspecto a ser considerado cuidadosamente nas perspectivas formativas
de professores é o discurso da competência: competência do(a) professor(a)
e competências a desenvolver nos alunos. Retomando Severino (2009), se
educação institucionalizada deve ter como horizonte formação humana de
modo integrado, ela transcende, embora não despreze, as questões ligadas a
competências, tal como essas vêm sendo postas nas políticas públicas atuais.
Porém, de acordo com Souza e Pestana (2009), o discurso, nessas políticas
em que a questão de competência é analisada, subordina a educação somente
às demandas socioeconômicas dos novos modelos de articulação produtiva,
além de revelar uma compreensão do sujeito de forma idealizada e não
situada, camuflando as contradições e desafios a serem enfrentados
pelo setor educacional, especialmente na formação docente (SOUZA;
PESTANA, 2009, p.133).
Segundo essas autoras, o termo é polissêmico e presta-se a proposições em
educação as mais contraditórias ou reducionistas, havendo negação da
dimensão social e relacional da competência. A atuação de professores no seu
trabalho, em situações em que determinadas competências são requeridas,
se dá em um determinado contexto sociocultural, histórico e relacional
interpessoal. As situações escolares não são “descoladas” das circunstâncias
que as constituem especificamente. A crítica que Souza e Pestana fazem é
que, com apoio no pressuposto desse sujeito descolado de suas circunstâncias, os sistemas
educativos e as instituições educacionais, tendem a comprometer-se
exclusivamente com a capacitação de pessoas isoladas, sem se responsabilizar
pelas condições que os constituem como professor e como sujeitos
(SOUZA; PESTANA, 2009, p. 147).
E o fazem numa visão de competência descontextualizada. Consequentemente,
“tal visão incide na responsabilização individual do docente pela
qualidade do ensino e pela educação nacional” (SOUZA; PESTANA, 2009,
p. 147). Não só processos de formação inicial ou continuada têm tomado
esse pressuposto como base, como também os processos de avaliação docente,
inclusive os de carreira docente, as políticas de abono salarial e os prêmios.
A discussão sobre essas políticas e seus efeitos precisa ser posta, demandando
uma reflexão sobre esses efeitos e sobre as propostas implementadas.